Sexta-feira, 11 De Fevereiro,2011

Entretanto, noutro local não muito longe dali...

A Avó, Mãe da Mãe, sempre tentou fazer de mim uma senhora "à séria". Há uns vinte, vinte e cinco anos atrás, e na cabeça da Avó, isso significava transmitir-me não só valores como... lavores.

Lembro-me bem - tão bem - de estar sentada à beirinha da cama da Avó, com ela à minha frente, de agulhas nas mãos e esquemas complicados no colo, novelos e novelos de linhas por todo o lado e uma persistência infinita a ensinar-me os passos e os preceitos todos.

Aquelas tardes eram para mim um pesadelo. Sempre gostei de trabalhos manuais, mas trocava de bom grado as agulhas por pregos sem sequer pestanejar. Os nomes eram confusos. As costas doíam-me. As malhas saltavam e perdiam-se. Os enganos só eram descobertos quando já ia umas sete ou oito carreiras mais à frente. Pior, muito pior, do que tudo isto era o sol que fazia na rua e o vento nas árvores que parecia chamar por mim. Eu suspirava, suspirava, suspirava... e lá endireitava as agulhas e esforçava-me por prestar atenção à Avó (dizer que não a tanto empenho parecia-me uma maldade muito grande).

Até renda de 5 agulhas eu fazia. Com "gatos", é certo, mas fazia... usando pedaços de cortiça na ponta das agulhas para (tentar) evitar a tragédia maior de qualquer senhora dos lavores digna desse nome: a frustração das malhas caídas.

Hoje, vinte ou vinte e cinco anos depois daquelas tardes, pego nas agulhas de tricot da Mãe e

- Ó Mãe, como é que se com...

e antes de terminar a frase, dou por mim a montar uma carreira quase sem olhar, com os dedos a andar ligeiros para trás e para a frente, como se tivesse sido ontem que me sentei à beirinha da cama da Avó.

Wow.

A memória é, de facto, algo extraordinário.

(Interrogo-me se, pegando num tecido de algodão e começando a puxar linhas, também me lembrarei automaticamente daquelas barras para toalha que aprendi a fazer. Hei-de experimentar...)

Entretanto, e porque, afinal, com pregos ou com agulhas, trabalhos manuais são sempre trabalhos manuais, naqueles bocadinhos entre o jantar e o ir dormir (ou entre o tentar jantar e o adormecer em cima do prato), ando a dar corda aos dedos. Ou melhor, ando a dar trapilho aos dedos. E, claro, culpa das pesquisas para a quase-casa-nova, a IKEA foi a minha inspiração:

[imagem daqui]

Believe it or not, apesar de nas fotos parecerem penicos, ao vivo estão verdadeiramente engraçados.

Avó J., fui eu que fiz!

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Quarta-feira, 20 De Janeiro,2010

Memória

Era assim. Era sempre assim.

Eu e o Irmão almoçávamos à pressa, vestíamos os casacos e íamos para a janela do quarto fixar os olhos e as expectativas no fim da rua. Esquadrinhávamos todos os carros vermelhos, todas as pessoas altas de andar gingão e todos os sons parecidos com um assobio. Esperar por ti por detrás daquele vidro embaciado, empoleirados no psiché que havia por debaixo do parapeito, era como viajar numa autêntica montanha-russa de emoções: “É! / Não é! / É! / Não é!”.

Conhecíamos sem surpresa todas as curvas e contracurvas do percurso, mas, ainda assim, repetíamos com sofreguidão, vezes e vezes sem conta, os mesmos gestos infantis e inocentes. As rotações do relógio eram suportadas estoicamente, numa resistência sem prazo. Cada um de nós, com os nossos dedos ainda pequeninos, queria ser o primeiro a acertar, ao longe, na tua presença.

Nos dias em que a promessa se cumpria e te topávamos, a montanha-russa atingia o seu ponto mais alto, num frémito de felicidade. Corríamos então escada fora a gritar “Já chegou! Já chegou!” e toda aquela tarde de espera, de almoços engolidos sem mastigar e de narizes esborrachados contra a janela se esvaziava nos degraus que saltávamos a dois e dois para nos precipitarmos nos teus braços.

O que se seguia era certo. O grande passeio prometido reduzia-se à pastelaria que ficava a duzentos metros da nossa porta. Era quase tão bom como ir à Feira Popular, porque podíamos comer o que quiséssemos. Gelados. Bolos. Chocolates. Pastilhas. Tu nunca trazias novidades: bica, bagaço, cigarros. E ali ficávamos, a conversar ou em silêncio, durante uma longa meia hora que rematavas meio bruscamente.

Nós aceitávamos, como sempre aceitámos tudo, e despedíamo-nos felizes, sem interrogações no coração. Aquele minúsculo pedaço de tempo parecia-nos imenso e impossível de caber em cronómetro algum.

Mas havia dias, os mais difíceis, em que nem sequer aparecias. A hora combinada passava, como habitualmente, e por ela passavam, sem qualquer explicação, outras horas e outros dias. E nós, prontos para te receber incondicionalmente, guardávamo-nos para mais tarde, para quando pudesse ser, para daí a uma semana, para daí a um mês, para daí a um qualquer precioso e fugaz momento teu que nos quisesses dar.

Era assim. Era sempre assim. E nós, eu e o Irmão, carregávamos connosco um sentimento por ti que não compreendíamos, localizado algures entre a latitude do amor e a longitude da desilusão.

Não sei porque me lembrei disto agora, mas a recordação mais triste que tenho da minha infância são as horas em vão que passei à tua espera por detrás de um vidro embaciado, cheia de esperança, cheia de sonhos.

Nunca mais fui capaz de sonhar assim.

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Quarta-feira, 22 De Outubro,2008

Peixa

Ontem voltei para o meu jacuzzi semi-olímpico.

Os braços pesaram-me. O rabo flutuou sozinho. As pernas pareciam varas imóveis.

Caneco. Eu não era assim.

Quando me iniciei nas artes natatórias, aí pelos meus 9, 10 anos, detestei a coisa. Era sempre aos sábados, depois de um almoço de iscas com puré de batata. A piscina era-me enorme, funda, com água a mais. Sempre que entrava em estado de pré-afogamento, a monitora mandava-me fazer sorrisos amarelos e continuar a tentar. A mim só me apetecia chorar e fugir dali para fora (o que acabei por fazer).

Anos mais tarde, decidi que a água não iria ser mais forte do que eu e meti-me outra vez na natação. Aprendi a nadar como deve de ser, a controlar a respiração, a fazer apneia, a aperfeiçoar o meu sentido cinestésico. E fui passando de nível, passando de nível, passando de nível... até chegar ao ponto de o meu monitor me querer encaminhar para a competição. Na altura, estava no pico da minha relação com a mixórdia de H2O e Cl. Toda eu era água, cloro, braçadas, cambalhotas, viragens, metros e metros de estilos sem parar.

Mas não quis. Ou melhor, quis, mas, por causa da Faculdade, sabia que não tinha tempo.

Hoje, em que nado de forma mais ou menos contínua, já não tenho nem metade da pedalada dos meus tempos áureos. Fazer os 25 metros debaixo de água é motivo de festa para um mês inteiro.

Tenho pena de não conseguir mais.

Mas o que consigo sabe-me tão bem...

(e ontem reparei que as torneiras dos duches são da mesma marca que aquelas que queremos pôr na casa nova )

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Quarta-feira, 27 De Agosto,2008

Chiado

Houve um incêndio ao pé da minha casa. A uns 200 metros, mais precisamente. Labaredas altas, alimentadas por ervas, pinheiros e vento. E muitos mirones. Nunca tinha visto a minha rua tão movimentada como naquele momento, com pessoas com quem nunca me cruzei e que pelos vistos também moram ali. Aparentemente, a desgraça une.

 

Foi estranho.

 

Tivemos direito a vários carros de bombeiros e a um helicóptero da protecção civil, que, no meio do fumo, conseguiu despejar uns quantos baldes de água e apagar rapidamente a desgraça.

 

Há 20 anos foi no Chiado – sem qualquer comparação. Abri a janela e tinha cinzas a pairar à minha frente e o céu coberto de nuvens cinzentas, apesar da distância.

 

Parece que foi ontem.

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Quinta-feira, 08 De Novembro,2007

Glutões

Nos idos e quase esquecidos anos oitenta do século vinte, havia um detergente para a roupa que prometia eficácia imbatível contra as nódoas graças à acção de uns bicharocos chamados glutões. Era o Presto e eu acreditava nele.

Lembro-me de estar debruçada sobre o tanque que existia na marquise da minha avó, com água e espuma a dois dedos do rebordo, em busca dos ditos glutões. E, sem dar parte de fraca, a garantir que sim, senhora, já os tinha visto.

- Olha ali um!! Viste, viste? Era azul!!

Toda a família alinhava na mentira piedosa dos glutões do Presto, de tal forma que até hoje não estou cem por cento certa de que não tenham existido.

Sinto que a minha cabeça é albergue para um sem número de glutões, confortavelmente sentados no espaço outrora ocupado por neurónios. E não há raios-xis que os detectem ou miligramas (quinze destes e dez destes ao pequeno-almoço, outros dez daqueles ao almoço, repete estes ao jantar, juntamente com aqueloutros, e antes de deitar, dez miligramas destes aqui) de comprimidos que os destruam.
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Quarta-feira, 26 De Setembro,2007

Instinto

A Mãe (e não só...) pede, com alguma insistência crescente, um neto.

- Dêem-me um neto. Pelo menos para perpetuar o meu sangue.

Assim, com estes pozinhos dramáticos todos, como se daí dependesse a sobrevivência da espécie humana nesta Terra em vias de extinção. A mim dá-me vontade de rir - principalmente pela argumentação apresentada -, seguida de uma certa vontade de gritar.
__________

Eu fui(?) daquelas miúdas maria-rapaz que quando virava o radar da atenção para as bonecas que teimavam em me oferecer, era para lhes arrancar cabeças, braços e pernas e afogá-las no lavatório ou no bidé, coisas bem mais engraçadas (e macabras!) do que tapá-las de noite e dar-lhes papinha e o aconchego do colo.

A única boneca de que verdadeiramente gostava chamava-se, em minha honra, Chorona. A cabeça fora recuperada de um dos meus exorcismos aquáticos e corpo era feito de pano, um tricot cor-de-laranja com recheio de espuma. Feia como tudo, tinha braços e pernas muito compridos - ou pelo menos assim me pareciam - e como eu me divertia a dar intermináveis nós pés-com-mãos-agora-a-cabeça-e-a-perna-depois-o-braço-com-o-joelho, em malabarismos impressionantes que a transformavam numa bola fantástica para ser chutada contra a parede ou contra a cabeça do irmão.

A Chorona foi A boneca da minha infância. Nasceu pelas mãos da Mãe e já há alguns anos que se mudou de armas e bagagens - acredito que também cor-de-laranja - para uma lixeira qualquer, mas é a única em que penso de vez em quando e que até teve direito a um canto na minha fraca memória.

Se fosse hoje, chamar-se-ia Chorona Gritona.
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Sexta-feira, 05 De Maio,2006

As coisas parvas de que eu me lembro

Fui atropelada. Não hoje, nem na semana passada, mas há uns anos. Tinha ido buscar umas fotocópias e ia a atravessar a estrada, com os braços cheios de papéis, em direcção à paragem do autocarro. Um rapazito, com uma carrinha, a fazer inversão de marcha, não me viu e chocou comigo. Eu vi-o, a fazer a manobra e a chocar comigo e lembro-me de colocar a mão esquerda no capot do carro, como se assim o conseguisse impedir de avançar, e de gritar um "atenção!". O rapazito vinha devagar e parou quase imediatamente. A pancada foi leve, muito leve, mas o suficiente para eu me desequilibrar. Caí, ficando completamente deitada na estrada, as fotocópias a voar por cima de mim. Assim que todo o meu corpo – cabeça incluída – ficou em contacto com asfalto, ouvi um dramático "pronto, já está!".

Lembro-me de ver o céu azul, muito azul e uma chuva de folhas soltas, e o rapazito, muito aflito, a olhar para mim e a perguntar "Estás bem? Estás bem? Não te vi, não te vi...", ao mesmo tempo que me tentava ajudar a levantar. E eu sem me mexer.

Segundos depois de tudo ter acontecido, consegui reagir e recuperar, a medo, o controlo de cada centímetro de mim mesma.

"É melhor levar-te ao hospital... queres que telefone a alguém?", continuava ele.

"Não, não... não te preocupes". Só queria ir-me embora, estava atrasada, com fome, tinha muito que estudar e precisava mesmo das fotocópias que tinha ido buscar e que tinham ficado espalhadas na estrada. Não podia perder tempo com hospitais, radiografias, perguntas e luzinhas a ver o fundo dos olhos.

O rapazito ia insistindo, atrapalhado, enquanto me ajudava a juntar as minhas coisas e eu ia repetindo sempre que estava bem, que não tinha batido com a cabeça (e não bati) e que tinha sido só o susto (e foi).

"Tens a certeza? Olha, toma o meu número de telefone, se precisares de alguma coisa, diz, está bem?", e estendeu-me um papelito, rasgado de um caderno, com umas letras rabiscadas a vermelho.

Sacudi o pó e as pedrinhas da roupa, ajeitei-me o melhor que pude e fui para a paragem. Quando o autocarro chegou, entrei nele, aliviada por encontrar pessoas que não tinham assistido a nada daquilo e que não iriam olhar para mim com um dramático "pronto, já está!".

Em casa, pousei tudo o que trazia nas mãos em cima da secretária do meu quarto e sentei-me num canto da cama. Estava sozinha. E desfiz-me em lágrimas.

[Durante uma semana, andei com o pulso ligado e o corpo dorido. Nessa mesma altura, soube que o irmão de uma professora minha fora atropelado e tinha morrido.]
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