Obrigada
Estive com um bebé de duas semanas ao colo.
E andámos (outra vez) a dançar na auto-estrada.
Estive com um bebé de duas semanas ao colo.
E andámos (outra vez) a dançar na auto-estrada.
O realismo, por oposição ao optimismo ou pessimismo, ganha em todas as frentes. Ainda que isso nos arranque o coração do peito e o desfaça em mil pedacinhos impossíveis de colar novamente.
Em determinada altura da sua adolescência, o Irmão andou agarrado a uns livros de aventuras em que a personagem principal (o próprio leitor) era confrontada com escolhas que dirigiam história para um ou outro rumo. Algo do género "Chegou a um castelo. Se quiser entrar pela porta, vá para a página 28; se quiser entrar pela janela, vá para a página 90", sendo que entrando pela porta éramos atacados por ogres verruguentos e entrando pela janela tínhamos de fugir de aranhas assassinas. À mistura havia umas cartas com pontos de força, batalhas, armas, dragões e toda uma panóplia de coisas de role-playing.
Nunca achei muita piada a esses livros e andava sempre para trás e para a frente nas páginas quando não gostava do desfecho da escolha que tinha feito anteriormente. Angustiava-me, sobretudo, não conhecer todos os rumos possíveis.
Hoje, continuo a angustiar-me quando, na incerteza de uma decisão, desejo ter o poder de espreitar para o futuro e descobrir qual o resultado daquilo que opto fazer no presente. Ao contrário dos livros, a vida não deixa andar para trás e para a frente, em undos e redos infinitos.
E às vezes dava-me jeito.
Quando te peguei ao colo pela primeira vez, eras uma pequena bola de pelo castanho, ternurento e fofinho. Mal abrias os olhos e parecias imensamente indefeso. Escolhemo-nos mutuamente, acho. Ainda nos foi sugerido que trouxéssemos um irmão teu, de ar pachorrento e molengão, mas não quisemos. É verdade: foi-nos acenada a hipótese de termos um cão normal e preferimos ter-te a ti. Ignorámos o coração a bater desenfreado na palma da minha mão, um presságio do bicho agitado em que te virias a tornar; também fizemos orelhas moucas aos guinchos soluçantes que emitias, uma antevisão de todos os agudos que viriam a sair constantemente do mais ínfimo recanto da tua garganta canina. Eras tu e pronto.
Cometemos imensos erros na tua educação. Não te conseguimos habituar à presença de outros cães. Não te conseguimos habituar a andar de trela. Não te conseguimos habituar a caminhar ao nosso lado. Não te conseguimos habituar a não uivar durante a noite. Não te conseguimos habituar a não escavar buracos pelo quintal todo. Sabias as regras, apenas escolhias não as seguir. Na verdade, eras bicho para fazer o Dog Whisperer descabelar-se todo.
Uma vez saltaste por cima do muro para ir atrás não sei do quê. Pusemos uma rede mais alta. Voltaste a saltar. Pusemos uma rede ainda mais alta. Fizeste um buraco e voltaste a saltar. Era frequente tocarem-nos à campainha para nos avisarem que "O vosso cão anda na rua". Tinhas sempre que fazer do lado de fora da casa. Comer porcarias. Ir ladrar aos outros cães. Levantar a pata em todas as esquinas e pedras. Rebolar-te em coisas imundas. Uma alegria.
Noutra ocasião, aproveitaste um nanosegundo de distracção em que o portão se manteve aberto sem vigilância e saíste disparado. Logo por azar, naquele exacto momento, passou um carro na rua a uma velocidade pouco compatível com cães que saem disparados do meio do nada. Levaste uma pancada, ganiste, fizeste-nos pensar o pior. Mas quando fomos ver, já ias bem longe, a saltitar com as orelhas ao vento, extasiado com a sensação de liberdade.
Também nos ajudavas na jardinagem. Comias pêssegos podres directamente da árvore. Ias roer limões – que tinhas arrancado dos ramos - para os degraus da entrada. Abrias sulcos em busca de minhocas. Usavas a mangueira como aperitivo enquanto não te enchíamos o prato (este hábito, aliás, levou-te de emergência ao veterinário por teres ficado com os intestinos entupidos com o plástico que tinhas roído). E depois de teres descoberto os prazeres da coprofagia, a vida em casa nunca mais foi a mesma.
Em determinada altura, achámos que o teu problema era excesso de energia. Levámos-te à praia (na época baixa, obviamente) para correres à vontade. E como correste... principalmente atrás dos outros companheiros de quatro patas. Quando te colocámos novamente no carro, arranjaste forma de ladrar a todo e qualquer cão que se cruzasse connosco, de tal maneira que acabámos por ter uma matilha a perseguir-nos estrada fora. Eras um verdadeiro bullier e nunca te intimidaste com o facto dos outros terem o triplo do teu tamanho.
Ir contigo a qualquer lado era uma aventura e exigia comer previamente dois ou três bifes bem aviados. Não que fosses corpulento ou pesado, mas porque nos cansavas com os teus guinchos de excitação, com o frenesim da trela a puxar, com a sofreguidão de perseguir tudo o que se mexesse ou te parecesse minimamente interessante.
Dizem que os cães adaptam o seu comportamento ao estado de espírito dos seus donos; se eles estão tristes, o cão tenta consolá-los; se estão contentes, partilham dessa alegria. Tu estavas-te perfeitamente a borrifar. Estivesse eu como estivesse, rouca de tanto gargalhar ou com a vida a inundar-me por dentro e a transbordar-me pelos olhos, tu babavas-te para cima de mim como sempre, corrias e saltavas à minha volta como sempre, desafiavas-me com a bola como sempre, enchias-me de pelos como sempre.
Quando ficaste leishmanioso - e passado o choque inicial - interiorizei o facto de, mais tarde ou mais cedo, ficarmos sem ti. Tive apenas receio do processo até chegarmos a esse momento; tive receio que os rins ou o fígado falhassem, ou que sofresses um qualquer colapso súbito, ou que fossemos obrigados a correr a toda a hora para o veterinário, procurando mitigar-te o sofrimento.
Mas tal não aconteceu. Aguentaste-te heroicamente. Fizeste as medicações prescritas, as análises de controlo, a alimentação regrada. Não sei se foi por isso ou por pura sorte, mas demos a volta às sacanas das leishmanias. E o teu comportamento “exemplar” manteve-se genuinamente tresloucado até ao fim.
Foste um bom cão – um verdadeiro cão – e acho que fomos bons donos.
Quando nos dizem que para esquecer este devíamos arranjar já outro, eu penso por que raio de razão quereríamos nós fazê-lo. “Esquecer este” (esquecer-te!) seria esquecer os últimos doze anos de vida, da nossa vida-a-dois-mais-um-cão-de-olhos-amarelos-e-mal-comportado. Nunca conseguiria fazê-lo e conforta-me saber que, pelo menos nas nossas memórias e nas memórias dos sítios por onde passámos, tu serás eterno.
O bisturi corta-nos, os instrumentos entram-nos no corpo. São feitas manobras, acreditamos que com habilidade. A linha cose-nos, os pensos e as gazes protegem-nos. O paracetamol corre heroicamente por um tubinho. A anestesia distancia-nos de tudo.
Depois, deixam-se as feridas sarar, lentamente. E espera-se que a pele regenere, lentamente.
Mas nunca é exactamente a mesma coisa. Há sempre uma cicatriz qualquer a fazer de âncora entre o antes, o durante e o agora.
Ainda que aparentemente invisível.
um curso, workshop, tutorial, vídeo no youtube, instruções, alguma coisa - qualquer coisa - que nos ensinasse a gerir expectativas.
Foi um ano estranho.
(não o são todos?)
Pouquíssimos posts aqui no blog e muitas coisas vividas fora dele, boas e más.
Nas más, é engraçado porque pensamos sempre que não vamos aguentar, que vamos desabar a todo o instante. Mas depois apercebemo-nos que não. Apercebemo-nos de que aguentamos sempre mais um bocadinho, mais um bocadinho, mais um bocadinho. As pernas encontram sempre uma réstia de força para irem andando, a corda tem sempre um pouco mais por onde esticar sem partir. O mundo carrega-se às costas mas, surpreendentemente, lá vamos conseguindo suportar-lhe o peso.
As boas foram normais. E normal é bom. Normal é excelente, aliás. E pouco valorizado, penso eu. Esse é o meu principal desejo para 2013: saber apreciar mais quem e o que tenho e perder menos tempo com quem e com o que não tenho.
O segundo desejo para este novo ano, para além dos óbvios paz e amor para todos, é, tal como a Pêpa / Pépa / Pepa, poder comprar uma mala Chanel. Eu e todas as pessoas que vivem ao cimo da Terra.
E, já agora, que o mundo não acabe (outra vez)!
Feliz 2013!