Âmago

Enquanto estive doente, a Mãe deu-me papas à boca. Desfez as refeições possíveis em puré. Levou-me à cama maçã cozida misturada com iogurte. Despiu-me e espantou o suor febril com um banho morno de esponja. Esfregou-me as costas com álcool. Ajudou-me nas trocas de roupa. Meteu-se a conduzir no trânsito, à noite, de olhos ainda dilatados de uma ida ao oftalmologista, para me acudir. Colocou-me toalhas molhadas na testa. Foi comigo de madrugada para o hospital. Sentou-se ao meu lado, a vigiar-me o sono. E disse sempre, sem certezas algumas,

- Amanhã já estás melhor.
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A Mãe foi operada à vista anteontem. Cataratas e miopia. Pus-me boa para a poder acompanhar, estive com ela até se sentar na marquesa e estive com ela quando se levantou de lá. Sequei-lhe o cabelo empapado em soro, limpei-lhe o betadine que lhe mascarava a cara. Levei-a pelo braço até ao carro, acalmei-lhe os receios pelo caminho, mesmo sem saber o que dizia. Acabei de fazer o almoço, alimentei a bicharada. Sentei-me ao seu lado enquanto descansava. Pus-lhe as gotas prescritas, levei-lhe o lanche à cama, tapei-lhe o frio com um cobertor extra. Saí a correr do trabalho para a ver, telefonei-lhe para me certificar que estava bem.

Hoje é dia de consulta. A Mãe ri-se quando se vê ao espelho sem óculos. Sente-se frustrada porque não consegue trabalhar no seu tapete de arraiolos. Está, ao mesmo tempo, excitada e nervosa com a mudança.
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Há, na natureza, qualquer coisa de avassaladoramente instintivo e animal numa mãe que tenta proteger as suas crias de todos os perigos. O contrário, às vezes, também acontece.
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publicado por outrosdias às 16:45
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