Estou uma senhora
Fiz doce de maçã.
S. Pedro, amigo, há um momento, temido em qualquer relação, em que um dos intervenientes profere as terríficas palavras "Temos que conversar...". Pois é chegado esse momento entre nós os dois.
S. Pedro, temos que conversar.
S. Pedro, chegou-me aos ouvidos que tencionas fazer chover este fim-de-semana. Mas não é uma chuvinha qualquer. É um temporal. Quilolitros e quilolitros de água. Gigas, teras, petas de chuva. Não pode ser, S. Pedro. O fim-de-semana é aquele período entalado entre horas seguidas a aturar gente doida e manienta, telefonemas irritados, prazos impossíveis, dores de cabeça de origem variada e maus-humores de manhã à noite. Esta tortura dá-me carências, S. Pedro. E eu careço de andar de bicicleta, actividade que é pouco conciliável com a molha que pretendes mandar cá para baixo. Por isso, meu querido anjinho, faz-me lá o favor de mudar de planos e eu serei tua para todo o sempre, sim?
Agradecida.
Casa nova que se preze tem, como é óbvio, obras depois das obras. A nossa não é excepção e avançámos com uns arranjos exteriores que estavam na calha e que um dia talvez se venham a traduzir numa pequena horta. Estes arranjos fazem pó e, por isso, não tenho deixado a roupa estendida na rua durante o dia. Além disso, o estendal (ainda improvisado...) está precisamente no meio do sítio onde os pedras-men têm de trabalhar e partilhar a minha roupa com eles não é algo que me agrade propriamente... Assim sendo, tenho tido o cuidado de estender a roupa na véspera, ao fim do dia, e tirar tudo rapidamente de manhã, passando o que ainda não estiver seco para um estendal colocado dentro de casa.
Esta semana, devido à falta de materiais, os arranjos pararam e eu aproveitei para baixar a guarda. Ontem tirei apenas parte da roupa que estava estendida, deixando na rua as peças que ainda não estavam completamente secas. Quando regressei a casa, reparei, com grande constrangimento, que afinal os pedras-men tinham lá estado a trabalhar... lado a lado com a minha querida roupa lavada, aquela mesma que eu com tanto cuidado e obsessão andava a evitar deixar na presença deles.
Paralisada em frente às molas, insultei-me mentalmente várias vezes, desconsolada e envergonhada até à medula com a distracção fatal. É que o que tinha ficado na linha eram nem mais nem menos do que... cuecas. Muitas, muitas cuecas, de várias cores, com bonecos, lisas, novas, velhas. Toda a minha roupa interior esteve ali, bem à vista e bem à frente dos pedras-men, ao longo de um dia inteiro.
Depois disto, a esperança que eu tinha de manter, durante algum tempo, uma imagem respeitável simplesmente desvaneceu-se. Nunca mais conseguirei erguer dignamente os olhos para os pedras-men sem visualizar florzinhas e coraçõezinhos.
Eu sei que é apenas um ser-peludo-que-vive-connosco, que o bicho já não é propriamente novo, que guincha com uns agudos únicos e dolorosos, que é muitas vezes muito chato, que dá trabalho e nos enche de cuidados, que tem pulgas (às vezes carraças), que se baba para cima de nós e nos cobre de pelos à mínima distracção da nossa parte, que rói tudo o que lhe deixarmos à mão de semear, que tem humores e manias várias, que faz buracos pelo quintal todo, que é tudo o que um cão mal-educado e cheio de personalidade pode ser. E também sei que daqui a seis meses tudo pode ter mudado, tudo pode ser diferente, para melhor ou pior.
Mas hoje... hoje estou particularmente feliz, por ele e por nós.
A titulação da leishmaniose, repetida dois anos e meio depois do diagnóstico, deu um resultado que seria considerado negativo num cão que tivesse feito o despiste pela primeira vez.
:)
Estive duas semanas doente e mais duas semanas com tosse e não sei se foi disso ou doutra coisa qualquer, mas sinto-me cansada, tão cansada, sem qualquer sinal de energia, imersa debaixo da austeridade, do calor, das alergias, das palavras que se engasgam e do pó das obras, dos amigos que estão e dos que não estão, das saudades, da praia, do ser-peludo-que-vive-connosco, dos livros e da bicicleta, da agenda, dos números inteiros e das letras infinitas, da lista imensa de sonhos e ideais, do sofá que me multiplica exponencialmente a inércia, da vida que passa por mim a uma velocidade que não consigo acompanhar, e só me apetece dormir, dormir, dormir, mas quando pouso a cabeça na almofada, só ouço o coração a bater, a bater, a bater, numa cadência e num eco que não me deixam sossegar e depois quando finalmente consigo, o despertador assassina-me todas as esperanças e diz-me que não é suficiente, não chega, é preciso mais, e lá vai disto que um novo dia começa e não se pode desperdiçar nada.