D. Maria do Carmo
Janeiro 27, 2011
A D. Maria do Carmo reformou-se. Vocês talvez não saibam quem é a D. Maria do Carmo, mas eu digo-vos. A D. Maria do Carmo é a senhora do mercado a quem eu comprei batatas, cenouras, cebolas, alfaces, kiwis, maçãs, morangos, castanhas, cerejas, couves lombardas, couves coração, espinafres, agriões, brócolos, feijão verde, nabos, abóboras, melancias, meloas, laranjas, peras, bananas, courgetes, pêssegos e uvas nos últimos onze anos.
A D. Maria do Carmo tratava-me por menina e quando me dizia “Tenho aqui mais”, eu já sabia que devia largar as laranjas expostas e ir ter com ela atrás do balcão para escolher outras. Aquilo era uma espécie de ritual secreto, como se a fruta que estivesse atrás do balcão fosse melhor, mais doce, mais saborosa e destinada apenas a um pequeno e selecto conjunto de fregueses. E fazia-me sentir especial. E, involuntariamente, também me fazia sentir mal sempre que, por exemplo, comprava cenouras no hipermercado por ser mais barato.
A D. Maria do Carmo levantava-se de madrugada e levava para o mercado um copo grande, de plástico azul, com leite e nestum, para ir comendo ao longo da manhã. Enganava as horas que lhe pesavam nas pernas e o frio que por vezes ali chegava da rua em rajadas de vento arrumando e desarrumando continuamente os produtos nas caixas e na bancada. Tinha sempre uma opinião a dar sobre a vida em geral, a política, a meteorologia, a sociedade, os jovens.
- Então menina, que é feito de si? Tem estado a trabalhar, não é? Pois, tem de ser... Eu é que, felizmente, estou quase a ir para a reforma. Isto agora querem pôr-nos a trabalhar até cair para o lado, já viu?! E cortam-nos em tudo, em tudo! É na saúde, é nos descontos, nos transportes... em tudo! - dizia-me, entre uma pesagem e outra.
Agora na banca dela está outra senhora, que pode ser igualmente simpática e ter produtos igualmente bons, mas que, lá está, não é a D. Maria do Carmo. Já não há um copo de plástico azul com leite e nestum pousado junto à balança. E aquele pedaço do corredor, mesmo ao lado do senhor que vende bacalhau e em frente à senhora do pão e dos bolos, hoje parece-me triste e vazio.
“Se falar com ela dê-lhe um beijinho meu”, pedi a uma vizinha.
A D. Maria do Carmo reformou-se e eu ainda não estou em mim.