A matéria de que somos feitos
Dezembro 03, 2009
Caminho depressa, com receio que as palavras me fujam.
Será como adormecer? Este estado semi-comatoso, de respiração irregular? Será que dói? E onde? Nos braços? Dentro do peito? Nas saudades? Será que se pensa? E em quê? Em que ponto nos deixamos ir? E vamos? Quando é o último sopro? E a consciência, perde-se? Ou ganha-se?
As mãos fecham-se, estremecidas. Parecem querer agarrar qualquer coisa. O olhar está inquieto, acelerado, impotente perante a traição do invólucro doente. A tosse é desesperada. O peito arfa, sem ar. Depois acalma, iludido. O raciocínio é perfeito e o discurso constante, ainda que sussurrado por vezes. Luta contra o inevitável, o não assumido, e deseja as histórias que ficaram por fazer.
"Quando estiver melhor, quero ir para casa", e minutos depois, como que subitamente lúcida, "Tenho medo de morrer sozinha".
As semelhanças que observo arrepiam-me. A teimosia. As ideias fixas. O ter sempre algo a dizer e a opinar. A independência. O fechar-se no seu próprio mundo. As barreiras erguidas, à espera de quem tenha a coragem e, principalmente, a persistência de as contornar. O coração amolecido perante um afago, mesmo que breve.
Acaricio a herança com um nó na garganta. Que outros genes terei seus?
Aos poucos, a luz apaga-se. O tórax sobe, desce e pára em ritmos cada vez mais longos.
Já é só corpo o que vejo.
Recordo fragmentos de palavras e de vivências fantásticas. Sorrio, remexo-me interiormente, liberto sentimentos.
A face está tranquila e apazigua-me.
Tia-avó, minha árvore centenária da capicua dos 101.