Eu não uso saltos altos no dia-a-dia. Apenas quando a ocasião o obriga. E quando digo obriga, é mesmo por obrigação, que cá estes pés e esta coluna apenas aceitam sapatos rasos durante a semana, ténis ao fim-de-semana, chinelos nos intervalos e pezinho directamente no chão sempre que possível.
Seria de esperar que, depois de duas festividades que impuseram o dito salto alto, me doessem as costas, as pernas, os pés, ou, vá lá, um ou dois dedos. Mas não.
Depois de um-dia-com-saltos-um-dia-sem-saltos-outro-dia-com-saltos, o que me dói são... os abdominais.
Sentada na sanita, queixo-me de comichões e alergias causadas pela depilação. A Mãe, sem quaisquer pudores, entra pela casa-de-banho adentro e põe-se a mirar as manchas, pintas e borbulhinhas que tenho nas pernas. O irmão, também sem quaisquer pudores, entra atrás dela e ali ficam os dois a analisar a epiderme irritada dos meus membros inferiores.
Sinto-me como uma amiba enfiada dentro de uma placa de Petri e metida debaixo de um microscópio e estou quase, quase a gritar para me deixarem em paz, que tenho de ir trabalhar e que já não se pode estar sentada na sanita em sossego quando o irmão (que é meio-quase-todo hipocondríaco), diz que também tem uma mancha e aponta, sofrido para a mão. A Mãe vira as atenções para ele, ripostando, orgulhosa, com uma cicatriz recente no braço e enquanto ambos tiram as medidas àquelas coisitas sem importância, eu aproveito para me vestir e fugir dali para fora.
No intervalo de uma apresentação, o orador esquece-se que tem o portátil ligado ao datashow e começa a ler e a responder a mensagens de mail à frente de todos.
Disfarço o sorriso ao constatar que não sou a única que hesita hesita, troca lertas, escreve, apaga, escreve apaga umas cinco vezes até ficar satisfeita com o texto.
- Olha... - Diz... - ...vou morrer com aftas. - Dou-te uma lambada se não te calas com isso. - Dás nada... - Dou, dou... mas amanhã, que agora estou com muito sono. - Está bem, está prometido.
- Anda aqui uma melga!... Consegues ouvi-la? - Sim... parece uma Famel Zundapp... - (abrindo uma gaveta da cómoda) Preciso de um pano para a matar. - Opaahh... então essa roupa está lavada e passada a ferro, não vais matar a t-shirt (sic) com isso! - (às chineladas ao ar) Pimba, já está!! Matei-a enquanto voava! - És o meu herói. - Epa... mas acho que ainda a estou a ouvir... - São as amigas. Estão a fazer uma festa.
Ao dar com mais uma improvável afta localizada num improvável canto da boca, penso que estes estreptococos - cocos para os amigos - devem mesmo gostar muito de mim.
Tenho até vontade de fazer alguns trocadilhos com a palavra cocos, mas o ardor no improvável canto da boca, provocado pela improvável afta, guilhotina-me os pensamentos quase todos.
Eu só sei ser filha. E às vezes nem isso. Às vezes até sou Filha da Mãe, mesmo. E das grandes.
E só sabendo ser filha (ignorando todas as outras alturas em que não o sei ser), não me acho com legitimidade para distribuir por aí rótulos de "melhor mãe do mundo". Mas vou fazê-lo e dizê-lo à mesma.
Os dias que são mais dias. Mais luz, menos noite (ou mais tarde e mais curta). O sol e o céu azul que me sacodem pela manhã. O calor e o lusco-fusco ao entardecer. Os pés descalços e os arrepios sem frio.