As aftas lá cederam a doses maciças de um líquido amarelo mal-saboroso que tem, algures pelo meio, uma coisa que dá pelo nome de nistatina. Frascos e frascos depois, o véu do palato voltou a parecer um véu do palato e comer está a deixar de ser uma tortura com direito a lágrimas e pontapés no ar.
Fiquei com cicatrizes para recordação e ai de quem me fale em tirar os outros dentes do siso que ainda cá estão.
... ... ... ... ... pronto... ... ... ... sem palavras... ... ... ... ... ... ... ... não estava mesmo nada à espera... fizeram-me chorar, seus malandros eheheh
Até aí aos dez, doze anos, o Carnaval era, para mim, mascarar-me de Sevilhana. Uma fatiota toda catita, em tons de vermelho, branco e preto, um sem número de saiotes, com maquilhagem a acompanhar.
A princípio até achava graça àquilo. Não percebia o porquê da coisa, mas sempre eram momentos diferentes do dia-a-dia. Depois, comecei a deixar de achar tanta graça, mas continuei a vestir a fatiota porque havia quem achasse a mesma graça de antigamente.
A certa altura, embirrei com os saiotes e os vermelhos e as pinturas na cara, que o que eu queria era correr e com aquilo tudo em cima não conseguia. Por sorte, a embirração foi acompanhada por um crescimento em altura e a fatiota catita deixou de me servir. Fez-se forward para uma prima mais nova, adeus, adeus.
Os Carnavais seguintes resumiram-se a serpentinas e a papelinhos atirados pela janela. Continuava a não perceber o porquê da coisa, mas a coisa continuava a ser um momento diferente do habitual rame-rame e por isso fazia-se e até se ia ver os desfiles, os corsos e os cabeçudos.
O desgosto em relação a esta época surgiu quando tive de fugir de ovos, bombinhas de mau cheiro, balões de água e afins. O ponto mais alto (ou mais baixo) aconteceu quando esperava pelo autocarro e uns energúmenos de metro e meio, pendurados na parte de trás de um eléctrico, decidiram descarregar todo o seu arsenal naquela paragem.
O banho ficou-me marcado.
Apesar de tudo, este ano vou celebrar o Carnaval em grande e no verdadeiro sentido da palavra: carne levare. Tenho lá em casa uma cozinha (já disse que comprei uma cozinha IKEA?) para montar. Durante pelo menos semana e meia, não há carne nem peixe para ninguém, que aquilo vai entrar em estado de sítio. Teremos marteladas e coisas partidas. Quem por lá passar, vai ver máscaras e até um desfile de entulho.
É que abrir uma janela dá muito trabalho e faz muito lixo.
- Então o que vai ser? - Uma sopa e um bife com batatas fritas, se faz favor. - Com certeza. Deseja mais alguma coisa? - Hmmm... sim. O meu dente, pode ser?
Três anestesias de olhos fechados. Uma língua que só é metade minha, uma bochecha que devo ter pedido emprestada. Luvas que entram em acção, pedindo ferramentas estranhas. Rápido, sem hesitar. Um, dois, três, e já está.
Assim.
Dedos goela abaixo e inquilino despejado.
Um bloco enorme, gigante. Não só pelo tamanho, mas por ser invulgarmente maior em comparação com os vizinhos. E com três raízes.
"Só cinco por cento da população é que tem dentes do siso com três raízes", ouço.
Uau. Boca cheia de sangue, a esbanjar nervos que não me cabem nos bolsos, mas parte de uma elite.
(cinco por cento é quase uma raridade, não acham?)
Um, dois, três, e já está. Tão simples, tão simples que a seguir fui ao IKEA comprar uma cozinha nova.
Sonhar que se está dentro de um elevador e que este começa a abanar muito, muito, muito e que roda até ficar de cabeça para baixo ao mesmo tempo que cai é sinal de....?
Comentários aos bonecos, via msn (da esquerda para a direita):
Boneco 1: . (eu) estou com um ar um bocado desanimado... . (eu) parece que tenho a cabeça virada para as costas, como no "Exorcista" . (eu) ó manoooooooo... :-) faz-me um desenho meu com o meu despenteado à Toni... vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá, vá lá
Boneco 2: . (eu) ó manoooo... então desenhas-me com uma barba??? . (eu) pareço o Pai Natal numa manhã de ressaca . (eu) não tenho tantos pelos assim... e se tenho, não se notam tanto!
Boneco 3: . (eu) pareço um daqueles bonecos que têm um jacto de ar por baixo e que andam a dançar . (o irmão) faz-me lembrar uma cebola . (o irmão) os braços parecem flores espetadas numa batata . (o irmão) as pernas parecem...
... pernas . (eu) o cabelo parece uma maçaroca de milho . (o irmão) hmmmm, maçaroca de milho! :-P
Dei-me ao trabalho de assistir aos tempos de antena dos movimentos pelo sim e pelo não. (In)felizmente, estava num daqueles dias em que apenas olho para a lógica das coisas e houve duas que simplesmente não "encaixaram". Por coincidência, ambas vieram da plataforma "Não, Obrigada".
A frase é "Abortar por opção sabendo que já bate um coração?". Dizem que, graças a avanços científicos, é possível saber que o coração do feto começa a bater ao 20º dia.
Pela lógica (ou ilógica), até ao 20º dia não há problema em fazer um aborto. Antes das 24 horas do 19º dia, o coração ainda não bate, por isso, tire-se à vontade; depois da meia-noite, atenção, já não pode.
A outra frase é "Contribuir com os meu impostos para financiar clínicas de aborto?". Dizem que a despenalização da interrupção voluntária da gravidez vai desviar verbas que são necessárias para o Serviço Nacional de Saúde.
Mais uma vez, pela lógica (ou ilógica), os impostos também não deviam ser utilizados nos próprios centros de acolhimento a grávidas necessitadas. Se engravidaram apesar de toda a informação e de todos os meios contraceptivos disponíveis, porque é que eu tenho de as ajudar com os meus impostos, quando há listas de espera de anos e anos nos hospitais, para situações bem mais graves e até de vida ou morte?
...
(a própria frase que vai aparecer no boletim de voto não é muito lógica:
"Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?".
Por opção da mulher? E o pai da criança, se quiser, não opina? Será a gravidez fruto de concepção imaculada?)
Já repararam que as pessoas têm tendência para circular pelo lado direito quando andam a pé no meio de multidões? Será que é porque na estrada também circulamos pelo lado direito?
Mais: será que em Inglaterra os transeuntes andam pela esquerda?
(A minha aversão a cabeleireiros é sobejamente conhecida:
. Entro e mesmo antes de falar com alguém já estou a dever 20 euros - risca. . Tempo de espera superior a dez minutos - risca. . Tempo de tortu... errrr... de corte superior a dez minutos - risca. . Espetam-me os pentes nas orelhas - risca. . Utilizam o secador como se quisessem fazer de mim uma tocha humana - risca. . Saio de lá pior do que entrei - risca. . Saio de lá tal e qual como entrei - risca.
And so on.)
Sempre que tenho de recorrer a estes profissionais, vou a um diferente. Desta vez, segui a recomendação do marido e decidi entregar-me à única pessoa que ele deixa aproximar-se do seu cabelo com uma tesoura na mão: a S.
Lá fui,
- É para lavar e cortar, se faz favor.
Sento-me, a S. enche-me de espuma até às orelhas, tenho de pedir para baixar a temperatura da água, sinto coisas a escorrer pelo pescoço. O habitual, portanto. Passo para defronte do espelho e quando começo a explicar os meus dramas capilares e o corte que gostava de ter, sai da boca da S. uma frase fatal:
- O Toni já vem cortar.
Alto. Ninguém se mexe. Parem tudo. Stop, stop, STOP.
O Toni?! QUAL TONI??!!
Por detrás de uns frascos, vejo o dito Toni. Tem ar de copos. Grande, desajeitado. Olhos um bocadinho tortos. Esquisito. Imagino-o com uma faca do talho na mão a despedaçar javalis.
Não, não, não... O Toni NÃO me vai cortar o cabelo! Eu vim cá para ser atendida pela S. e não por um Toni...
A S. desaparece não sei para onde e o Toni aproxima-se de mim, armado com uma tesoura. Arrepio-me, torço-me na cadeira, planeio uma fuga sem muito estrilho, procuro em pânico a saída mais próxima.
- Então, como vai ser o corte?
Estou paralisada. Gaguejo, sacudo a toalha. A S. não está em lado nenhum, abandonou-me à mercê do despedaçador de javalis.
...
...
Calma. Respira fundo.
...
...
...
O cabelo cresce novamente, certo? Certo.
- ... errr... eu costumo cortar aqui a direito e aqui mais subido.
O Toni ouve. Ouve mas não avança. Parece esperar que eu diga mais qualquer coisa.
- Ele tem muitos jeitos e espeta muito.
Oh my god... espeta? ESPETA?? Eu estou a falar em espetadas com alguém que, de certezinha, tem em casa uma colecção de ganchos para pendurar carcaças de gado?
...
Coragem. Lembra-te: ele cresce novamente.
- Gostava de experimentar um corte diferente. Talvez...
Hesito. Volto a hesitar. Perdida por cem, perdida por mil. O cabelo cresce novamente, certo? Certo.
- ...talvez mais curto.
Foi a loucura total. Juro que vi os olhos um bocadinho tortos do Toni a reluzirem de satisfação. A tesoura tremeu com a emoção. O peito encheu-se de ar, como que tomando fôlego para a empreitada.
- Preciso de mais luz aqui! Mais luz!!
A S. aparece, vinda do sítio onde se escondeu (provavelmente para fugir dos javalis) e acende umas lâmpadas por cima de mim. Olho para ela, como que implorando socorro, mas de nada vale. O Toni finalmente avança e começa às tesouradas.
Já chega, não? Espere, espere, não corte tanto aí!! Está a ficar torto... Mais não, mais não! O meu cabeloooooo....
...
...
...
- Gosta de se ver assim?
- Gosto, gosto. Está muito giro.
- É um penteado... assim.. despenteado.
Despenteado é bom. É o meu estado natural. Agora já posso dizer que é de griffe.
- ... um corte moderno, jovem...
Moderno? Jovem? Excelente. Mesmo o que eu estava a precisar.
- Está muito giro, gosto muito!
Chego a casa e tenho uma poupa no ar. Tento penteá-la, baixar-lhe a crista. Não consigo. O cabelo está torcido em todas as direcções. Irregular. Cheio de tufos.
Toni, o despedaçador de javalis com os olhos um bocadinho tortos, derrotou todas as outras cabeleireiras finas que me tentam sempre distrair das asneiradas que se passam cá em cima com os seus "vai arranjar as unhas?":
Número de vezes que me cravaram os dentes do pente na cabeça: zero. Número de queimaduras de secador: zero. Número de produtos peganhentos despejados sobre o meu couro cabeludo: zero. Número de tesouradas fora do sítio: três (mas faziam parte do penteado/despenteado). Número de vezes que me arrependi de não ter fugido: zero (mas só a partir do momento em que o Toni pousou a tesoura)
Estou oficialmente despenteada e gosto.
Tenho frio nas orelhas, mas que se lixe. Ele cresce novamente (embora isso agora já não seja necessariamente urgente).
Às vezes há coisas tão estúpidas, tão pequenas, tão insignificantes que me dão vontade de chorar e sinto-me tão idiota por ficar com um nó na garganta com aquilo e abafo as lágrimas já à beirinha dos olhos e é tudo tão parvo, tão parvo e sem razão.
Sou pelo sim. Ouvi uns zunzuns vindos dos movimentos pró e dos movimentos contra. Mas não sei ao certo o que dizem. E não sei argumentar por uns e por outros. E também não sei justificar a minha opinião em detrimento das outras.
Mas sei que sou pelo sim. E sei que isto é muito, muito mais do que uma - ou a - questão levada a referendo.
Duas horas a gastar a sola dos ténis no Freeport de Alcochete. Compras: zero.
Meia hora e uma Ponte Vasco da Gama depois, chego à Baixa de Lisboa. Em menos de dez minutos e na primeira loja onde entro, encontro exactamente o que procuro.