Enquanto estive doente, a Mãe deu-me papas à boca. Desfez as refeições possíveis em puré. Levou-me à cama maçã cozida misturada com iogurte. Despiu-me e espantou o suor febril com um banho morno de esponja. Esfregou-me as costas com álcool. Ajudou-me nas trocas de roupa. Meteu-se a conduzir no trânsito, à noite, de olhos ainda dilatados de uma ida ao oftalmologista, para me acudir. Colocou-me toalhas molhadas na testa. Foi comigo de madrugada para o hospital. Sentou-se ao meu lado, a vigiar-me o sono. E disse sempre, sem certezas algumas,
- Amanhã já estás melhor. _____
A Mãe foi operada à vista anteontem. Cataratas e miopia. Pus-me boa para a poder acompanhar, estive com ela até se sentar na marquesa e estive com ela quando se levantou de lá. Sequei-lhe o cabelo empapado em soro, limpei-lhe o betadine que lhe mascarava a cara. Levei-a pelo braço até ao carro, acalmei-lhe os receios pelo caminho, mesmo sem saber o que dizia. Acabei de fazer o almoço, alimentei a bicharada. Sentei-me ao seu lado enquanto descansava. Pus-lhe as gotas prescritas, levei-lhe o lanche à cama, tapei-lhe o frio com um cobertor extra. Saí a correr do trabalho para a ver, telefonei-lhe para me certificar que estava bem.
Hoje é dia de consulta. A Mãe ri-se quando se vê ao espelho sem óculos. Sente-se frustrada porque não consegue trabalhar no seu tapete de arraiolos. Está, ao mesmo tempo, excitada e nervosa com a mudança. _____
Há, na natureza, qualquer coisa de avassaladoramente instintivo e animal numa mãe que tenta proteger as suas crias de todos os perigos. O contrário, às vezes, também acontece.
O dentista a quem recorri quando tudo começou disse-me que se a infecção fosse no dente, anestesiava-se e tratava-se (ou arrancava-se). Como era na gengiva, nada mais havia a fazer senão esperar (e tomar antibióticos que depois me encheram a garganta de aftas, mas adiante...)
Ou seja. Meninos, meninas, criancinhas, jovens em crescimento, educadores e pais preocupados: esqueçam as escovagens de dentes, os suplementos de cálcio, flúor e afins, os elixires e o fio dentário. Mais vale uma boca cheia de cáries do que uma gengiva inflamada.
A dupla Sónia Araújo/Jorge Gabriel, a Fátima Lopes e o equivalente rival da TVI (a 4 está codificada*, por isso não sei qual é o programa das manhãs daquela estação) não têm qualquer hipótese perante os desenhos animados da 2.
Os meus preferidos são "As aventuras horripilantes do Beto e da Gina". Lembram-me o "Ren & Stimpy", em versão soft.
* a antena lá de casa recusa-se a receber qualquer sinal electromagnético vindo de Queluz.
A "impressão" que, há cerca de duas semanas e meia, senti na gengiva do siso inferior esquerdo – nada que não tivesse já acontecido e passado rapidamente, sem consequências – foi apenas a ponta do iceberg.
A gengiva inflamou de tal maneira que não conseguia fechar a boca sem que o dente de cima a "esmagasse", causando, assim, ainda mais dor e piorando a infecção. Passava o tempo com um saco de gelo encostado à cara, à espera que decorressem horas suficientes para poder tomar outro analgésico ou outro anti-inflamatório.
Os antibióticos receitados pelo dentista aniquilaram por completo o equilíbrio bacteriológico existente na minha boca. Alguns bichos foram destruídos, mas outros, deixados sem "predadores", encontraram campo para proliferarem. Comecei a queixar-me da garganta. Pensou-se primeiro em amigdalite, mas rapidamente se viu que era candidíase orofaríngea. Tinha o fundo da boca coberto por aftas... placas e placas de aftas.
Não conseguia falar, mastigar, engolir. A Mãe chegou a ter de me dar comida à boca. Eu chorava.
A febre era uma constante. De dia e de noite, dias e noites, assim que passava o efeito do antipirético, lá voltava o termómetro a disparar. Delírios, prostrações, arrepios, suores, trocas de roupa, banhos improvisados.
Numa das madrugadas, a garganta e a língua incharam tanto que comecei a ter dificuldade em respirar. O ar não passava. Nas urgências, mandaram-me tomar um corticóide para desinflamar e fazer outro antibiótico.
Dois ou três dias depois, a febre finalmente cedeu. A garganta deixou de estar tão inflamada e as aftas começaram a ficar menores. Mastigar e engolir um pedacinho de miolo de pão marcaram o princípio da minha recuperação. Recomecei a sentir-me eu.
Quando já pensava em regressar ao trabalho, acordei com os braços, mãos, cara e pés cobertos de pequenas borbulhas vermelhas. E muita comichão. No Centro de Saúde, disseram-me que era alergia ao antibiótico que ainda estava a tomar. Troquei-o por um anti-histamínico.
Hoje ainda tenho mais borbulhas que ontem. A comichão mantém-se. Estou de baixa até amanhã e segunda-feira já devia ir trabalhar, mas a Mãe vai ser operada às cataratas.
Dezoito é o número de medicamentos que já tomei desde que esta "saga" começou. Não admira que esteja doente.
Dentro da minha boca reside um número ímpar de dentes. Tinha-os todos, sisos incluídos, até ao dia em que uma médica decidiu que era engraçado tirar-me um.
E tirou-o. E doeu comó caraças.
Por razões várias - embora a principal tivesse sido a péssima assistência pós-operatória - escolhi outra clínica e outro dentista para as revisões seguintes.
Saiu-me na rifa um que me queria arrancar os restantes dentes do siso. Porque estão meio inclusos e porque "não servem para nada".
Com aqueles sugadores de cuspo enfiados até à garganta e de olhos a piscar por causa da luz apontada às minhas entranhas, disse-lhe que sim e nunca mais lá fui.
Anteontem, ontem e hoje, soube, pela primeira vez, o que é ter uma verdadeira dor de dentes. Ou antes, uma verdadeira dor de gengivas.
A gengiva de um dos tais sisos que devia ter sido extraído resolveu lembrar-me constante, dolorosa e latejantemente que existe. Não consigo abrir nem fechar a boca e a baba escorre-me pelos cantos.
E dói. Comó caraças. Ao ponto de não conseguir dormir.
Estou a antibiótico, analgésicos, anti-inflamatório e elixir bucal.
Nos tempos da escola, achava imensa piada às colegas que dedicavam horas e horas de secador às suas cabeleiras, para esticar, enrolar, compor, fosse o que fosse. E quando digo piada é mesmo piada, de quase me rir por não compreender tanto empenho.
Eu sofro de cabeleireiro-fobia. Ou antes, de secadorofobia. Nas sessões de tortura, perdão, de desbastanço de trunfa, peço sempre
- É só para tirar o excesso de água, se faz favor.
Nunca quero secar completamente. (além disso, desconfio que aquele calor todo não pode fazer bem aos neurónios...)
Em casa, tenho dois secadores. Um todo xpto que comprei num ataque momentâneo de insanidade e que apenas vê a luz do dia durante uns breves minutos durante o ano inteiro (se vivesse no Alasca, acho que teria mais sorte). E outro que me saiu numas rifas (ou quase) e que é tratado como pau para toda a obra (ou assim seria se efectivamente o utilizasse).
De notar que a palavra obra não foi escolhida ao acaso: o dito cujo já serviu para tentar derreter tubos de plástico. Bom, mas adiante.
Hoje finalmente percebi. Defronte do espelho, a olhar para o meu cabelo completamente desanimado, lembrei-me da tal piada que achava às minhas colegas e recorri ao secador para me pentear.
Sim, pentear a sério, a prestar atenção ao que fazia e a esforçar-me de verdade para dar um jeito a uma coisa que estava sem jeito nenhum (recordo que, por estas bandas, o estado natural é o desgrenhado e o jeito para dar um jeito é nulo).
O segredo é, afinal, bem simples (apesar de não ser suficiente para me render): sair de casa com uma poupa firme e bem empinada no cimo da testa faz maravilhas ao ego.
É claro que, para a próxima, meto um gorro até às orelhas e perontos.
A Mãe deixa cair uma fatia de manga que está a comer. O Irmão entorna sumo de laranja por cima da toalha. Eu tento fugir antes que me aconteça qualquer coisa, mas salta-me da boca um bocadinho de bolo - e logo do topo, a parte melhor dos bolos! - e pimbas, chão com ele.
Não há como evitar: quem sai aos seus não degenera.
Roupa que se lavasse, estendesse, secasse, passasse a ferro, dobrasse e arrumasse sozinha. Que fosse só carregar num botão e já está.
Compras e refeições que se fizessem sozinhas. Que fosse só carregar num botão e já está.
Loiça que fosse sozinha dos armários para a mesa, da mesa para o lava-loiças, do lava-loiças para o escorredor (devidamente lavada) e do escorredor novamente para os armários (devidamente seca). Que fosse só carregar num botão e já está.
Pó que saísse sozinho dos móveis, chão, tapetes, sofás, paredes, portas. Que fosse só carregar num botão e já está.
Janelas e cortinados que se lavassem sozinhos. Que fosse só carregar num botão e já está.
Lençóis que se mudassem sozinhos. Que fosse só carregar num botão e já está.
Casa-de-banho que se limpasse sozinha. Que fosse só carregar num botão e já está.
Tarefas laborais, telefonemas, mails, faxes e conversas que se despachassem sozinhas. Que fosse só carregar num botão e já está.
Almoços que se almoçassem sozinhos, jantares que se jantassem sozinhos, dentes e ramelas que se escovassem sozinhos, sapatos que se calçassem sozinhos. Que fosse só carregar num botão e já está.
Dia-a-dia que se dia-a-diasse sozinho. Que fosse só carregar num botão e já está.
A imobiliária que nos colocou um calendário na caixa do correio estaria apenas a colocar-nos um calendário na caixa do correio ou a dar-nos alguma indirecta?