Memória
Janeiro 20, 2010
Era assim. Era sempre assim.
Eu e o Irmão almoçávamos à pressa, vestíamos os casacos e íamos para a janela do quarto fixar os olhos e as expectativas no fim da rua. Esquadrinhávamos todos os carros vermelhos, todas as pessoas altas de andar gingão e todos os sons parecidos com um assobio. Esperar por ti por detrás daquele vidro embaciado, empoleirados no psiché que havia por debaixo do parapeito, era como viajar numa autêntica montanha-russa de emoções: “É! / Não é! / É! / Não é!”.
Conhecíamos sem surpresa todas as curvas e contracurvas do percurso, mas, ainda assim, repetíamos com sofreguidão, vezes e vezes sem conta, os mesmos gestos infantis e inocentes. As rotações do relógio eram suportadas estoicamente, numa resistência sem prazo. Cada um de nós, com os nossos dedos ainda pequeninos, queria ser o primeiro a acertar, ao longe, na tua presença.
Nos dias em que a promessa se cumpria e te topávamos, a montanha-russa atingia o seu ponto mais alto, num frémito de felicidade. Corríamos então escada fora a gritar “Já chegou! Já chegou!” e toda aquela tarde de espera, de almoços engolidos sem mastigar e de narizes esborrachados contra a janela se esvaziava nos degraus que saltávamos a dois e dois para nos precipitarmos nos teus braços.
O que se seguia era certo. O grande passeio prometido reduzia-se à pastelaria que ficava a duzentos metros da nossa porta. Era quase tão bom como ir à Feira Popular, porque podíamos comer o que quiséssemos. Gelados. Bolos. Chocolates. Pastilhas. Tu nunca trazias novidades: bica, bagaço, cigarros. E ali ficávamos, a conversar ou em silêncio, durante uma longa meia hora que rematavas meio bruscamente.
Nós aceitávamos, como sempre aceitámos tudo, e despedíamo-nos felizes, sem interrogações no coração. Aquele minúsculo pedaço de tempo parecia-nos imenso e impossível de caber em cronómetro algum.
Mas havia dias, os mais difíceis, em que nem sequer aparecias. A hora combinada passava, como habitualmente, e por ela passavam, sem qualquer explicação, outras horas e outros dias. E nós, prontos para te receber incondicionalmente, guardávamo-nos para mais tarde, para quando pudesse ser, para daí a uma semana, para daí a um mês, para daí a um qualquer precioso e fugaz momento teu que nos quisesses dar.
Era assim. Era sempre assim. E nós, eu e o Irmão, carregávamos connosco um sentimento por ti que não compreendíamos, localizado algures entre a latitude do amor e a longitude da desilusão.
Não sei porque me lembrei disto agora, mas a recordação mais triste que tenho da minha infância são as horas em vão que passei à tua espera por detrás de um vidro embaciado, cheia de esperança, cheia de sonhos.
Nunca mais fui capaz de sonhar assim.