Instinto

A Mãe (e não só...) pede, com alguma insistência crescente, um neto.

- Dêem-me um neto. Pelo menos para perpetuar o meu sangue.

Assim, com estes pozinhos dramáticos todos, como se daí dependesse a sobrevivência da espécie humana nesta Terra em vias de extinção. A mim dá-me vontade de rir - principalmente pela argumentação apresentada -, seguida de uma certa vontade de gritar.
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Eu fui(?) daquelas miúdas maria-rapaz que quando virava o radar da atenção para as bonecas que teimavam em me oferecer, era para lhes arrancar cabeças, braços e pernas e afogá-las no lavatório ou no bidé, coisas bem mais engraçadas (e macabras!) do que tapá-las de noite e dar-lhes papinha e o aconchego do colo.

A única boneca de que verdadeiramente gostava chamava-se, em minha honra, Chorona. A cabeça fora recuperada de um dos meus exorcismos aquáticos e corpo era feito de pano, um tricot cor-de-laranja com recheio de espuma. Feia como tudo, tinha braços e pernas muito compridos - ou pelo menos assim me pareciam - e como eu me divertia a dar intermináveis nós pés-com-mãos-agora-a-cabeça-e-a-perna-depois-o-braço-com-o-joelho, em malabarismos impressionantes que a transformavam numa bola fantástica para ser chutada contra a parede ou contra a cabeça do irmão.

A Chorona foi A boneca da minha infância. Nasceu pelas mãos da Mãe e já há alguns anos que se mudou de armas e bagagens - acredito que também cor-de-laranja - para uma lixeira qualquer, mas é a única em que penso de vez em quando e que até teve direito a um canto na minha fraca memória.

Se fosse hoje, chamar-se-ia Chorona Gritona.
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publicado por outrosdias às 09:46
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