Horas curtas
Vou desligar o coração por um bocadinho, para o proteger das notícias tristes.
Ontem molhei as mãos no mar e se mais tempo houvesse, teria lá deixado o meu corpo também. O céu manchava-se de flocos brancos, raiados a ouro sobre a linha do horizonte. Ao longe, tractores puxavam as esperanças de pescadores e de gaivotas. No ar dançavam sons de crianças e surfistas, embalados pelo cantar manso das ondas. Sob os meus pés, minúsculas conchas entrelaçavam-se com grãos de areia e traziam-me arrepios parecidos com a espuma branca das marés. À beirinha da água, o calor dos teus braços preenchia-me a pele e nos lábios saboreava as histórias que ainda temos por contar. Cheirava a sal, a barcos, a sonhos.
Ontem molhei as mãos no mar e foi quase perfeito.
Eras filha, irmã, neta, sobrinha, prima, amiga, colega, companheira. Eras sorriso, inteligência, perspicácia, carácter. Eras vontade, garra, coragem, amor, alegria. Eras pessoa, valor acrescentado, abraço caloroso.
Mais do que tudo o que eras, a nossa dor maior é pensar em tudo o que ainda podias vir a ser, tudo o que ainda podias vir a alcançar, tudo o que ainda podias vir a conhecer.
Tentamos entender e fracassamos. Tentamos buscar um sentido e não o encontramos. Apenas sabemos que fazes falta.
Se a inspiração anda perto do zero, a capacidade de escrever está vários níveis abaixo disso. E o que eu precisava de o fazer...
Ontem, entre o picanço de ponto da manhã e o picanço de ponto ao final do dia decorreram dez horas e vinte e nove minutos de trabalho efectivo.